De Fat Boy Joe à leptina: uma aventura digna do Sr. Pickwick
“... e no caixote sentou-se um garoto gordo e de rosto vermelho em estado de sonolência (...). - Joe! – que droga, aquele garoto foi dormir novamente! (...) Todas as pessoas estavam excitadas exceto o garoto gordo, e ele dormia profundamente como se o barulho do canhão fosse a sua canção de ninar... – Senhor, será que é possível beliscá-lo na sua perna? Nada mais o acorda!”
O trecho acima foi extraído do romance “Os Escritos Póstumos do Clube Pickwick” (The Posthumous Papers of the Pickwick Club), publicado em 1836 por Charles Dickens.
Figura 1: Uma das primeiras edições de “The posthumous papers of the Pickwick Club”, quando Charles Dickens ainda utilizava o pseudônimo “Boz”
Neste, que foi seu primeiro livro, Dickens parece ter descrito o primeiro paciente portador de apnéia do sono. Há ainda diversas outras referências no livro a esse personagem – Fat Boy Joe -, sugerindo que ele tinha uma forma grave da doença. O romance gira em torno das peripécias de certo Sr. Pickwick, que junto a seus três inseparáveis amigos - Tupman, Snodgrass e Winkle, integrantes do Clube Pickwick -, saem em aventuras pela capital inglesa do século XIX. É um retrato comovente e humorístico da sociedade de seu tempo. Em 1918 Sir Willian Osler usou o termo "Pickwickian" pela primeira vez para referir-se a paciente obeso e sonolento, em referência ao título do livro. O epônimo, consagrado em 1956 por Burwell e col., remete ao romance de Charles Dickens, e não a algum suposto médico que primeiro descreveu a doença. A partir daí, muitos acreditam que o personagem Pickwick é que possuía a síndrome, o que não é verdade. O garoto Joe era o apneico do romance de Dickens.
Figura 2: Ilustração de Joe – The Fat Boy, à época do lançamento do livro “The posthumous papers of the Pickwick Club”
Durante a evolução em nosso planeta, as primeiras formas de vida provavelmente se desenvolveram nos climas equatoriais e não nos pólos. Isso deve ter induzido nos primatas e nos primeiros seres humanos o surgimento dos ciclos de sono e vigília, conseqüência do movimento de rotação da Terra e do contato visual com o meio. O interesse pelo estudo do sono é relativamente recente. Talvez o maior obstáculo ao estudo do sono ao longo do tempo tenha sido o fato dos pesquisadores terem que ficar acordados à noite, o que só se tornou possível após o advento da luz elétrica.
O primeiro médico a descrever uma apnéia foi Broadbent em 1877, referindo-se a uma pessoa de idade avançada, deitada de costas, em sono profundo e roncando ruidosamente e que, de tempos em tempos, apresentava falha da inspiração. “Então, ocorrerão dois, três ou quatro períodos respiratórios de movimentos torácicos ineficientes, para finalmente o ar entrar com um ronco barulhento ou rugido, após o qual ocorrerão várias inspirações profundas compensatórias”.
Alguns momentos na história foram importantes para o desenvolvimento do estudo das doenças do sono e o primeiro deles foi a descoberta da atividade elétrica do sistema nervoso por Richard Caton, em 1875. O psiquiatra alemão Hans Berger foi o primeiro a descrever as ondas cerebrais no final dos anos 1920 e, na década de 1930, um grupo de Harvard descreveu os diferentes padrões de ondas cerebrais durante o sono. Avanços maiores nas pesquisas nesta área foram atrasados devido a Segunda Grande Guerra.
Foi somente em 1953 que um fato marcou uma nova era neste campo: a descoberta dos movimentos oculares e sua correlação com as fases do sono, com os sonhos e os batimentos cardíacos por Aserinsky e Kleitman. Em 1956, Burwell e col. consagraram o termo “pickwickiano” para descrever pacientes obesos e sonolentos, portadores de hipoventilação, cianose, policitemia e cor pulmonale. No entanto, suas conclusões são hoje contestadas, pois eles atribuíram a sonolência à hipercapnia. A importância do seu trabalho está na criação com sucesso do termo “Síndrome de Pickwick”, o que despertou o interesse sobre o estudo do assunto e a lenta popularização dos distúrbios do sono na classe médica.
Pouco depois, na Europa, grupos diferentes de pesquisas chegaram a conclusões semelhantes. Gastaut, Tassinari e Duron, na França, e Jung e Kuhlo, na Alemanha, observaram que doentes tidos como “pickwickianos” apresentavam repetidos episódios de apnéia durante o sono. Em 1965, o grupo francês descreveu a apnéia obstrutiva do sono, a importância do ronco, a hiper-sonolência e correlacionaram tais achados a doenças cardíacas, além de observar sua ocorrência mesmo nos não obesos. Kuhlo e col., em 1969, conseguiram melhorar esses doentes através da traqueostomia, consolidando o conceito que a apnéia do sono ocorre como conseqüência da obstrução ou do colapso das vias aéreas durante o sono.
Finalmente, em 1973, Christian Guilleminault reuniu os conhecimentos e cunhou o termo Síndrome da Apnéia Obstrutiva do Sono (SAOS), diferenciando dos achados da síndrome da hipoventilação do obeso. Mas foi em 1978 que John Remmers descreveu a interação entre sono, músculos da caixa torácica e da via aérea superior, o que elucidou o colapso da via aérea superior durante o sono. Guilleminaut, em 1982, relatou uma nova síndrome em crianças (Síndrome de Resistência de Vias Aéreas Superiores - SRVAS), também descrita em adultos em 1993. Nesse mesmo ano, importante estudo de Young e col. reconheceu a importância dos distúrbios do sono como problema de saúde pública, documentando sua prevalência na população.
Mais recentemente, os avanços neste campo alcançaram a genética. Hoje se discute o papel da leptina (do grego leptos, magro) no controle da respiração, particularmente em obesos. Em modelos animais, a perda do gen responsável pela produção da leptina levou à disfunção no controle da respiração, particularmente durante o sono REM, à obesidade e insuficiência respiratória. Tais alterações foram revertidas após reposição de leptina e não ocorreram em animais sem anormalidades dessa proteína e com obesidade induzida artificialmente. Como é rara a deficiência de leptina em humanos, postula-se que nos homens obesos ocorra um estado de resistência periférica à leptina.
Se os avanços no conhecimento da SAOS avançaram lentamente, o tratamento da mesma é muito mais recente. Embora divulgada em 1964 por Ikematsu para o tratamento do ronco, a uvulopalatofaringoplastia só foi utilizada para o tratamento da SAOS em 1981. Neste mesmo ano, na Austrália, Sullivan, Berthon-Jones, Issa e Eves publicaram os resultados de doentes que utilizaram a primeira máquina de pressão positiva contínua na via aérea (CPAP) para controle da apnéia obstrutiva do sono. Atualmente, o uso de CPAP é considerado a forma mais eficaz de tratamento da SAOS moderada e grave em adultos, e o seu uso também mostrou reduzir os níveis de leptina circulantes.
Há apenas poucas décadas que desordens respiratórias foram correlacionadas com a obesidade. No entanto, há mais de um século Charles Dickens antecipou a ciência nesta sua obra, onde nos apresentava de modo caricatural um clássico portador do distúrbio do sono.
Figura 3: Charles Dickens
Sem ser médico, Dickens era um sujeito pobre vindo de uma família cujo pai esteve preso por não pagar as suas dívidas. Possuía um profundo senso de observação das pessoas e de crítica social, e, com “Os Escritos Póstumos do Clube Pickwick”, publicado inicialmente em episódios inseridos em jornal quando ele tinha pouco mais de vinte anos, remediou a sua vida. Após vender 400 exemplares no seu ano de lançamento, no segundo ano a cifra atingiu o espantoso número de 40 mil, sendo um grande sucesso editorial. Seguiram-se Oliver Twist, Canção de Natal, David Copperfield e muitos outros, consolidando uma extensa e produtiva carreira. Reconhecido como um dos maiores escritores de todos os tempos, há um museu em sua homenagem em Londres e outro em Rochester, cidade onde anualmente se realiza o Festival Dickens.
BIBLIOGRAFIA
Dickens C. The posthumous papers of the Pickwick Club. London: Chapman and Hall; 1836.
Aserinsky E, Kleitman N. Regularly occurring periods of eye motility, and concomitant phenomena, during sleep. Science 1953;118:273–4.
Gastaut H et al. Polygraphic study of diurnal and nocturnal (hyponic and respiratory) episodal manifestations of Pickwick Syndrome. Rev Neurol (Paris) 1965; 112:568-79.
Guilleminault C et al. Insomnia with sleep apnea: a new syndrome. Science 1973; 181: 856-8.
Kuhlo W et al. Successful management of pickwickian syndrome using long-term tracheostomy. Dtsch Med Wochenschr 1969; 94:1286-90.
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